Detector de metais identifica possível corrente da escravidão dentro de árvore centenária em MG
Detector de metais identifica possível corrente da escravidão dentro de árvore centenária Uma pesquisa sobre a história de uma pequena cidade levou a uma d...

Detector de metais identifica possível corrente da escravidão dentro de árvore centenária Uma pesquisa sobre a história de uma pequena cidade levou a uma descoberta inesperada no Sul de Minas. Por meio dos relatos de moradores, os pesquisadores descobriram uma árvore que apita quando é avaliada por detector de metais (veja vídeo acima). 📲 Siga a página do g1 Sul de Minas no Instagram A árvore, que fica na borda de um cafezal, pode confirmar uma antiga história da época da escravidão que circula entre os habitantes de Cabo Verde- município com apenas 11,4 mil habitantes - apontando o local como um ponto usado para castigo e venda de pessoas escravizadas. Reza a lenda que a alta paineira que hoje tem um tronco de 3 metros de diâmetro, seria usada para manter os escravos presos por correntes e uma delas teria sido "engolida" pela planta durante o seu crescimento. Paineira centenária em cafezal de Cabo Verde (MG) apita quando avaliada por detector de metal Arquivo pessoal/Luís Eduardo Oliveira A propriedade pertence à família de Daniel Paiva Batista desde 1930. O sítio fica no bairro rural Retiro e é como tantas outras da região agrícola do Sul de Minas, com o plantio de café. No local, há um casarão de 1935 que foi reformado para abrigar uma área de lazer que é alugada por temporada. Batista conta que desde a adolescência escutava do tio e do avô a história da árvore que escondia um pedaço da história escravocrata da região. Segundo seus parentes, a árvore centenária ficava à beira de uma estrada e seria um ponto de punição e venda de escravizados "folgados". “Antigamente, quando comprava os escravos e tinha dois ou três, por exemplo, em um lote de 20, que não era bom de serviço, eles amarravam com corrente nessa paineira e quem passava por perto comprava mais barato, se quisesse”, narra Daniel. “Eles ficavam amarrados ali. A corrente era amarrada em volta do tronco. Aí conforme a árvore cresceu, a corrente ficou apertando até ser escondida dentro dela." Curioso por comprovar a lenda, Daniel procurou o professor de História Luís Eduardo Oliveira, um dos autores de um documentário sobre a história dos negros na cidade. O historiador foi até a árvore com um detector de metais e comprovou que, em um ponto específico do tronco, o equipamento apita, indicando a presença de metal dentro da paineira. "Não é qualquer detector porque ele determina o formato e o material do artefato. E somente na linha da cintura é que o detector acusa esse artefato. Nós saímos do sítio com a seguinte informação: temos um artefato do período em que Cabo Verde era um centro econômico de abastecimento de mão-de-obra escrava, e ele tem características muito sólidas que nos leva a crer que é uma corrente com elos circulares de ferro fundido", afirma Oliveira. Ele defende que o objeto, seja qual ele for, permaneça dentro da árvore, escondido aos olhos, mas coberto de significado. "A gente não deve tirar o artefato porque a árvore da maneira como ela está passa a ser um espaço de memória de Cabo Verde. Se a gente tirar o artefato de lá, ela se torna só uma árvore e o artefato se torna só um objeto", afirma. Detector de metais comprova presença de corpo metálico dentro de paineira em Cabo Verde (MG) Arquivo pessoal/Luís Eduardo Oliveira Força da natureza Segundo a bióloga Luciana Botezelli, professora do Instituto de Ciência e Tecnologia do campus de Poços de Caldas da Universidade Federal de Alfenas (Unifal), não é usual uma paineira viver centenas de anos, a ponto de ter crescido na época da escravidão. A média de vida dessa espécie varia entre 50 a 70 anos. Mas há a relatos de algumas plantas que viveram mais tempo. Ela confirma que algumas árvores podem envolver objetos que estejam impedindo o seu desenvolvimento. “Muitas vezes, quando vai havendo o crescimento do tronco, se a árvore vai ficando muito apertada pelo material, ela passa a criar uma estrutura de envolvimento daquilo que está incomodando e retendo o crescimento dela”, disse. Encantada com o simbolismo, ela destaca a força da natureza em transformar um local de dor em uma árvore majestosa. “Bonita história. Um local que abrigou tanta dor, tanto sofrimento dos escravizados, ser agora uma árvore tão linda quanto a paineira, com flores tão maravilhosas.” Paineira centenária em cafezal de Cabo Verde (MG) apita quando avaliada por detector de metal e pode guardar uma corrente usada na época da escravidão dentro dela Arquivo pessoal / Lidia Maria Reis Torres História escravocrata A descoberta da árvore que apita para o detector de metais surgiu após a divulgação de um documentário em 2023 sobre a existência negra e indígena em Cabo Verde, produzido por Oliveira e pela cientista social Lidia Maria Reis Torres. Cabo Verde é um dos municípios mais antigos da região. Foi fundado em 1762 tendo a produção cafeeira como responsável pela sua relevância econômica na época. Mas tanto Lidia quanto Oliveira encontraram dificuldades documentais para relatar a presença negra na comunidade. "Cabo Verde é uma cidade escravocrata e a classe econômica abastada dessa cidade contribuiu para o apagamento desta história. E esse apagamento foi sistematicamente feito para que não tivesse vestígio. É o conceito de institucionalização do esquecimento", afirma Oliveira. Foram os "causos" da cidade que ajudaram os pesquisadores a resgatar trechos da história deste período. “Eu sabia muito pouco sobre a presença do escravismo e fazendas. Os fazendeiros tinham uma limitação para falar sobre. Não tinham documentos e a gente sabe que existia. O que se tinha é muito esses "causos" que circulam, a oralidade, que uma pessoa vai contando para a outra, vai falando: ‘Ah, meu avô falou que tinha isso, alguém falou que tinha aquilo, mas nem sei se é verdade, é uma lenda’”, relata Lidia. Pelo menos um desses "causos" se mostrou verdadeiro com a identificação do metal dentro da paineira. “A gente não sabe, pode ser que seja um prego, pode ser que seja qualquer coisa, mas acho que essa marca oral de histórias que são repassadas de um período do escravismo é muito significativo", comemora a pesquisadora. "A história da árvore entra no meu doutorado como essa valorização da memória oral da cidade, desse passado afroindígena que foi apagado das narrativas oficiais, mas que sempre circulou nas memórias familiares." Motivados e reforçados pela contribuição de Batista e sua árvore que apita, os pesquisadores pretendem continuar a escavar a história do município. "Me importa menos a verdade absoluta dos fatos, e mais as histórias que foram repassadas por gerações. E que emergem nesse contexto de busca e valorização por esse passado. Junto com a história da árvore, eu vou seguir ouvindo a população, especialmente as pessoas mais velhas, para tentar encontrar mais e mais histórias que falem desse passado de Cabo Verde excluído de uma memória oficial, mas que seguem circulando entre algumas famílias para tentar reverter esse apagamento de certas histórias em detrimento de outras", afirma Livia. Veja mais notícias da região no g1 Sul de Minas